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sexta-feira, 6 de setembro de 2013

POEMAS DE GILBERTO MENDONÇA TELES

Criação



O verbo nunca esteve no início
dos grandes acontecimentos.
No início estamos nós, sujeitos
sem predicados,
tímidos,
embaraçados,
às voltas com mil pequenos problemas
de delicadezas,
de tentativas e recuos,
neste jogo que se improvisa à sombra
do bem e do mal.


No início estão as reticências,
este-querer-não-querendo,
os meios-tons,
a meia-luz,
os interditos
e as grandes hesitações
que se iluminam
e se apagam de repente.


No início não há memória nem sentença,
apenas um jeito do coração
enunciar que uma flor vai-se abrindo
como um dia de festa, ou de verão.


No início ou no fim (tudo é finício)
a gente se lembra de que está mesmo com Deus
à espera de um grande acontecimento,
mas nunca se dá conta de que é preciso
ir roendo,
roendo,
roendo
um osso duro de roer.


Gilberto Mendonça Teles,
in Álibis



História


Toda história tem seu texto
tem seu pretexto e pronúncia.
Tem seu remorso, seu sexto
sentido de arte e denúncia.


Tem um sujeito que a escolhe
que se encolhe e se confunde:
um lugar que sempre a tolhe
qui tollis peccata mundi.


Tem sua forma em processo,
tem seu recesso e cansaço,
e tem seu topo de excesso
no ponto extremo do escasso.


Tem sua língua felpuda,
a voz aguda e afetada.
R tem a essência que muda
e permanece, calada.


Toda história tem seu preço,
tem seu começo e seu dito.
É só virar pelo avesso,
ler o que está subscrito.


Gilberto Mendonça Teles



O discurso


Havia a necessidade absurda de falar
para manter o equilíbrio da mesa
e preservar a reputação implícita
nos gestos.


Alguém chegou a reclamar a urgência
de um gravador para medir as vaias.
Outro, mais complacente, se preparava
para pedir bis. Um terceiro mastigou
ruidosamente a ponta da língua.


Neste momento solene... o poeta
burlou a vigilência das moscas
e deu um salto mortal no meio
do discurso.


E ante a curiosidade geral dos convivas,
fabricou um cavalo de miolo de pão
e fugiu a galope, levando à garupa
a garota que estava fingindo que não.


Gilberto Mendonça Teles





DECLINAÇÃO



O mar não me levou:
o meus cuidados
(o que era ruim /o que era bom demais)
ficaram por aí, pelos cerrados,
à sombra dos paus-terras de Goiás. 

O mar não me lavou:
meu corpo todo
tem as marcas da terra – o sol, o chão,
os cheiros doces dos quintais, do lodo,
e a febre do meu T nesta sezão. 

Eu sou quem sou. Não me mudei. Mudou-me
uma parte da vida, mas foi sem:
não me levou nem me lavou,
livrou-me
da danação de todo mal, amém. 

(Se houver louvor aqui, se alguma luva,
qualquer pessoa a pode usar por mim:
a minha história é como um guarda-chuva
que a gente esquece,
quando chega ao fim.)


Gilberto Mendonça Teles



ELIPSE



Vim descobrir o que ficou de elipse
e precisão,
o que se fez sucinto e reticente,
o inacabado do cabo Não. 

Vim recolher esta úmida sintaxe
que foi além
e não poupou a rigidez da língua
que ficou sem. 

E vim, não para ver, deixar a meio
fala e raiz:
vim extrair de ti a própria essência
do que não fiz. 


Gilberto Mendonça Teles


ANULAÇÃO


Ocupar o espaço
contido na sombra,
ser o pó do espesso,
o vão da penumbra, 

o dó sem começo,
o nó sem vislumbre,
o invisível traço
do não-ser: escombro. 

Ser zero, ou nem isso:
letra morta, timbre
do vazio no osso.

Ser aquém do nome
— o só do soluço
de coisa nenhuma.

Gilberto Mendonça Teles




ANÚNCIO 



Troco urgentemente uma secretária 
eletrônica, 22ov, bastante conservada 
(motivo mudança de amor e domicílio), 
por uma secretária invisível, 
dessas que fazem desaparecer 
tudo de repente: 
colóquio de alquimistas 
congressos de bruxas 
reuniões de catedráticos 
e até o I simpósio 
de mulheres jubilosas. 

Que seja loirena e diligente, 
que seja meiga, sobretudo quando visível. 
Que não se esqueça dos pequenos aniversários 
(uma semana disso, um mês daquilo) 
e os saiba comemorar condignamente 
nalgum lugar secreto: 
ilha ou limbo 
beira de mar 
quarto de hotel 
fumaça de cachimbo. 
Que seja também multilíngüe 
para entender-me em todos os sentidos. 
E que não perca nunca o seu charme 
para me seduzir ou raptar-me 
nas horas mais incríveis de solidão. 

(Cartas para esta redação.) 

Gilberto Mendonça Teles





Preciso urgentemente encontrar 
minha secretária invisível 
que se perdeu sexta-feira 
em reuniões e telefonemas 
e me deixou a ver navios. 

Melhor: um submarino atômico 
que entrou pelo rio e bombardeou 
toda a cidade, virando-a 
pelo avesso, como um absurdo 
e até remoto cataclismo. 

(Gratifica-se bem quem der notícia 
a esta redação. Ou à polícia.) 

Gilberto Mendonça Teles




ORIGEM

Agarro o azul do poema pelo fio
mais delgado da lã de seu discurso 
e vou trançando as linhas do relâm-
pago no vidro opaco da janela. 

Seu novelo de nuvens reduplica 
a concreta visão desse animal 
que se enreda em si mesmo, toureando 
a púrpura do mito e se exibindo
diante da minha astúcia de momento. 

Sou cheio de improviso. Sou portátil. 
E sou noite e falácia. Sou impulso
e excesso de acidentes. Sou prodígios.
E agora que há sinais de ressonância 
sou milícia verbal configurando 
a subversão na zona do silêncio. 
.......................
Todo início é noturno. Todo início
é maior que seu tempo e sua agenda 
de imprevistos. Mas todo início aguarda 
a visita dos deuses e demônios.

Há fórmulas polidas nos subúrbios 
da fala. Há densidades nos recintos 
desprovidos de margens. E nos mínimos
detalhes de ruptura existe um sopro
de solidão que soa nesta vértebra 
de audácia e persistência. 
...........................................Alguém pertuba 
o horário de recreio das palavras. 

Gilberto Mendonça Teles
In 'Arte de armar' (1977)


CONVITE

Vem comigo para dentro 
da palavra multidão:
de mãos dadas somos vento,
somos chuva de trovão.

Se uma andorinha sozinha
não pode fazer verão, 
vem comigo mais ainda 
para dentro da expressão. 

Cada letra tem seu ninho 
de palavras no porão:
vem tirá-las de seu limbo, 
vem fazer tua oração. 

Dentro de cada palavra,
no seu timbre e elocução, 
saberás de peixe, cabra, 
de liberdade e quinhão. 

E até na palavra nova, 
bliro, ilhaval e zirlão 
alguma coisa se dobra, 
tem sentido a sedução. 

Pega portanto uma letra, 
pega a palavra invenção
e transforma em borboleta 
um risco arisco no chão.

É no centro da linguagem,
no seu silêncio e pressão, 
que se dedilha uma casa, 
que se desenha a canção. 

Gilberto Mendonça Teles
In (Álibis) 2000.



Etnologia


Ainda 

há índios.

Gilberto Mendonça Teles



Nos Últimos 20 anos

Nos últimos vinte anos, muitas coisas
tiveram seu princípio –

.................Uma lagarta
começou a comer o talo verde
de uma folha esculpida na parede
do edifício mais próximo.

................Uma aranha
teceu e desteceu a sua renda
à espera da odisséia de um inseto
curioso.

................Um beija-flor impaciente
começou a amolar o longo bico
no metal do verão.

................Recém-nascido,
um menino berrava o beabá
mijando indiferente na linguagem.
Entre greves, censura e terrorismo,
um relâmpago veio da internet,
riscou no movimento o próprio site
e se perdeu na pós-modernidade
do milênio.

................Enquanto isso, o amor abria
seus e-mails (sem vírus), a sua flor
de signos, suas formas, a sua arte
de escandir as vogais, tanger os ictos,
as consonâncias e, sílaba a sílaba,
plantar no íntimo do homem o desejo
mais fundo da poesia.

Gilberto Mendonça Teles



DILEMA

Tenho o sangue da gente aventureira
e o amor à terra que me deu o sonho.
Mas me encontro parado na fronteira,
sem saber se recuo, ou se a transponho.
Aprisionado pelo ideal que sonho
na solidão da praia derradeira,
risco na areia o poema que suponho
ficará na memória a vida inteira.

O gosto de lutar contra o imprevisto
fez-me todo de vento e não resisto
ao desespero bom de ir mais além.
Estendo os olhos para o mar, e penso:
"- Tenho chumbo nos pés e o mar e imenso:
só me resta sonhar como um refém." 


Gilberto Mendonça Teles



MELODIAS

Ternas melodias de longínquas plagas,
ns manhãs da vida fascinando a gente,
sois o desafio de revoltas vagas
pela alma ecoando como um som ausente.

Ternas melodias, de que mundo ignoto,
de que estranhas erras vindes me encantar?
Sois a transparência que no sonho noto?
Sois a ressonância do poema, no ar?

Ou vindes dos astros – de uma Sírius? Vênus?
De que firmamento, de que céus surgistes?
Quérulos gemidos de amarguras plenos,
só podem ser ecos de meus sonhos tristes.

Essas melodias cheias de tristeza
são talvez saudades que em meu peito eu tinha:
São as confidências dessa natureza
de milhares de almas que possuo na minha.

Essas melodias que a minh´alma douram,
que a meus sonhos beijam com tamanho ardor,
essas melodias tão sonoras foram
de remotos tempos vibrações de amor.


Gilberto Mendonça Teles



O OUTRO

Já não serei eu mesmo, serei outro
quando me virem segurando as horas
e desenhando pássaros barrocos
nas pétalas das conchas e das rosas.

Se, deslumbrado pela luz da autora,
eu caminhar sem rumo, como um louco,
sabei que levo estrelas na memória
e me contemplo velho, sendo moço.

Diante dos homens gritarei comícios
e arrastarei por onde for o bando
que me seguir os passos indecisos.

E quando a noite vier rolando o medo,
eu dormirei nas pedras como um santo
e sonharei nas ruas como um bêbado. 


Gilberto Mendonça Teles







SONETO XXII


Não morrerás em mim. Não morrerás
assim como uma sombra na distância,
o vento no horizonte e, nas manhãs,
a alegria mais pura que inventamos.
Serás presente em tudo e viverás
o segredo de todos os momentos.
Todas as coisas gritarão teu nome
e o silêncio mais puro, o mais sutil,
aquele que mais dói e acende as noites
e o ser profundamente intranqüiliza
este restituirá o movimento,
a eternidade viva de teus passos
e a certeza mais limpa de que nunca
tu morrerás em mim.
Não morrerás.


Gilberto Mendonça Teles
de Sonetos do azul sem tempo






ROSÁRIO

Para Mary

Em pleno sol de outono, em pleno maio, abrindo
a alma para os cristais dos dias mais risonhos,
vou desfiando ao léu, pelo horizonte infindo,
meu rosário de sonhos.

Vou desfiando, assim, meu rosário de contas
esplêndidas, azuis, de rósea cor tocadas
e que são como orvalho a oscilar-se nas pontas
das folhas pelo sol do estio marchetadas.

Hei de rezá-las todas.
Passá-las, de uma a uma, em cânticos de hinário,
que os dias deste mês de noivados, de bodas,
serão contas de luz na cruz do meu rosário.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos


ACALANTO


Fecho meus olhos para o teu canto
e ouço a cantiga vibrando no ar:
asas de vento, sons de acalanto,
a luz do dia no próprio encanto
que o sol da vida te faz cantar.

Fecha teus olhos para o meu canto
e ouve o marulho longe de um mar,
lançando à praia do desencanto
todo o meu sonho desfeito em pranto
que o sal da vida me faz chorar.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos



CANÇÃO


As horas dançam no tempo
e o tempo, na madrugada.

Do cimo da vida, apenas
vejo a poeira na estrada.

Meus rastros viraram pedras
na terra do antigamente.

E as horas morrem no tempo
como o tempo, no poente.


Gilberto Mendonça Teles
Planície “in” Hora Aberta



O discurso


Havia a necessidade absurda de falar
para manter o equilíbrio da mesa
e preservar a reputação implícita
nos gestos.


Alguém chegou a reclamar a urgência
de um gravador para medir as vaias.
Outro, mais complacente, se preparava
para pedir bis. Um terceiro mastigou
ruidosamente a ponta da língua.


Neste momento solene... o poeta
burlou a vigilência das moscas
e deu um salto mortal no meio
do discurso.


E ante a curiosidade geral dos convivas,
fabricou um cavalo de miolo de pão
e fugiu a galope, levando à garupa
a garota que estava fingindo que não. 

Gilberto Mendonça Teles



Meus Outros Anos


Eu me lembro, eu me lembro, Casimiro,
no meu São João, no meu Goiás, na aurora
da minha vida, eu li o teu suspiro,
li teus versos de amor que leio agora.

E que meu filho lê, e todo mundo
sabe de cor, de coração, de ouvido,
desde que sinta o apelo mais profundo
de tudo que tem força e tem sentido.

Contigo comecei a ver e vi
as coisas mais comuns - o natural:
o rio, a bananeira, a juriti
e a tarde que cismava no quintal.

Contigo descobri a travessia
do tempo na manhã, no amor, no medo,
nos olhares da prima que sabia
a dimensão maior do meu brinquedo.

E até este confuso sentimento,
esta idéia de pátria, que persiste,
veio de teus poemas, no momento
em que tudo era belo e apenas triste

era pensar no exílio e ver no termo
um motivo de doença e de pecado;
triste era imaginar o poeta enfermo,
tossindo os seus silêncios no passado.

Eu me lembro, eu me lembro! e quis de perto
ver o teu rio, teu São João, teu lar;
ler a poesia desse céu aberto
que continuas a escrever no mar.

Gilberto Mendonça Teles


ELIPSE



Vim descobrir o que ficou de elipse
e precisão,
o que se fez sucinto e reticente,
o inacabado do cabo Não. 

Vim recolher esta úmida sintaxe
que foi além
e não poupou a rigidez da língua
que ficou sem.

E vim, não para ver, deixar a meio
fala e raiz:
vim extrair de ti a própria essência
do que não fiz. 

Gilberto Mendonça Teles


ANULAÇÃO



Ocupar o espaço
contido na sombra,
ser o pó do espesso,
o vão da penumbra, 

o dó sem começo,
o nó sem vislumbre,
o invisível traço
do não-ser: escombro. 

Ser zero, ou nem isso:
letra morta, timbre
do vazio no osso.

Ser aquém do nome
— o só do soluço
de coisa nenhuma.

Gilberto Mendonça Teles


Geração

Sou um poeta só, sem geração,
que chegou tarde à gare modernista
e entrou num trem qualquer na contramão,
e vai seguindo sem sair da pista.

A de quarenta e cinco me tutela,
me trata como a um filho natural.
Eu chego às vezes tímido à janela
mas vou brincar no fundo do quintal.

Na poesia concreta, a retaguarda
é que me vê brincando de arlequim.
Às vezes fujo à rima e lavo um fardo
de roupas sujas, não tão sujo assim..

A de sessenta e um foi de proveta,
foi mágica de circo para um só.
Ninguém me viu caçando borboleta
ou pescando escondido o meu lobó.

Quem fez letra, cantou e usou bodoque
que se fez marginal pela cidade,
será que fez poesia ou fez xerox
ou apenas tropicou na liberdade.

Gilberto Mendonça Teles
de Hora Aberta


À Linha da Vida


A que, visível, se interrompe
na palma da máo, decisiva:
a ultrapassagem do horizonte
pelo lado avesso da escrita.


À Linha do Universo


A que, invisível, se deleita
no olho sensual da fechadura:
a letra (aleph) e seu pentelho
no espaço-tempo que se enruga.

E, anjo ou demônio, pinta o sete
mas tão relativo e medroso
que o tom azul logo se perde
na linha de fundo do esboço.


À Linha-d’água


Visível enquanto invisível,
compõe seu ritmo avergoado:
a imagem se imprime no nível
do que está deste e do outro lado.

Por sob a carga o sonho e o medo
de haver perdido e haver ganhado:
no contrabando do segredo
o contrapeso do sagrado.

E o que ficou quase perdido
(o que me deixa envergonhado)
ainda viaja sem sentido,
meio à deriva,
xxxxxxxxxxxe bem calado.


Rio, 1986.

Gilberto Mendonça Teles


Locus Amoenus


Sou homem do mato e meio bugre:
falo pouco e penso enviesado,
usando sempre expressões populares.
E, por gostar de fazer arte,
ando morto de amor,
mas vivinho da sílvia.

Às vezes sou até meio exibido:
mato a cobra e mostro logo o pau,
enquanto os deuses brincam
no lugar mais ameno da floresta.

Daí talvez o meu gosto e inclinação
pelas coisas mais simples:
cheiro de flor, resina, zigue-
zague de borboleta e barulhinho
de folha seca nos trilheiros,
além do indispensável gole de cachaça
que faz muito bem depois do poema.

O que não se explica é este jeito de sombra,
este balanço do corpo nos atalhos
e este sestro de chupar a ponta da língua
e extrair a polpa de uma fruta
no meio do cerrado.

É daí que aprecio melhor
o pisco repentino de uma estrela.

Gilberto Mendonça Teles


45

A Domingos Carvalho da Silva


Sou da geração
de quarenta e cinco
ou tenho na mão
a porta sem trinco?


(Nem sei quantas são
as telhas de zinco
que cobrem meu chão
de quarenta e cinco.)


Semeei meu grão?
fui ao fim do afinco?
pesquei a paixão
de quarenta e cinco?


Tudo é sim e não
em quarenta e cinco.
E a melhor lição
forma sempre um vinco


de interrogação
no tempo, onde brinco
procurando um vão
entre o 4 e o 5.



Gilberto Mendonça Teles





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sexta-feira, 6 de setembro de 2013

POEMAS DE GILBERTO MENDONÇA TELES

Criação



O verbo nunca esteve no início
dos grandes acontecimentos.
No início estamos nós, sujeitos
sem predicados,
tímidos,
embaraçados,
às voltas com mil pequenos problemas
de delicadezas,
de tentativas e recuos,
neste jogo que se improvisa à sombra
do bem e do mal.


No início estão as reticências,
este-querer-não-querendo,
os meios-tons,
a meia-luz,
os interditos
e as grandes hesitações
que se iluminam
e se apagam de repente.


No início não há memória nem sentença,
apenas um jeito do coração
enunciar que uma flor vai-se abrindo
como um dia de festa, ou de verão.


No início ou no fim (tudo é finício)
a gente se lembra de que está mesmo com Deus
à espera de um grande acontecimento,
mas nunca se dá conta de que é preciso
ir roendo,
roendo,
roendo
um osso duro de roer.


Gilberto Mendonça Teles,
in Álibis



História


Toda história tem seu texto
tem seu pretexto e pronúncia.
Tem seu remorso, seu sexto
sentido de arte e denúncia.


Tem um sujeito que a escolhe
que se encolhe e se confunde:
um lugar que sempre a tolhe
qui tollis peccata mundi.


Tem sua forma em processo,
tem seu recesso e cansaço,
e tem seu topo de excesso
no ponto extremo do escasso.


Tem sua língua felpuda,
a voz aguda e afetada.
R tem a essência que muda
e permanece, calada.


Toda história tem seu preço,
tem seu começo e seu dito.
É só virar pelo avesso,
ler o que está subscrito.


Gilberto Mendonça Teles



O discurso


Havia a necessidade absurda de falar
para manter o equilíbrio da mesa
e preservar a reputação implícita
nos gestos.


Alguém chegou a reclamar a urgência
de um gravador para medir as vaias.
Outro, mais complacente, se preparava
para pedir bis. Um terceiro mastigou
ruidosamente a ponta da língua.


Neste momento solene... o poeta
burlou a vigilência das moscas
e deu um salto mortal no meio
do discurso.


E ante a curiosidade geral dos convivas,
fabricou um cavalo de miolo de pão
e fugiu a galope, levando à garupa
a garota que estava fingindo que não.


Gilberto Mendonça Teles





DECLINAÇÃO



O mar não me levou:
o meus cuidados
(o que era ruim /o que era bom demais)
ficaram por aí, pelos cerrados,
à sombra dos paus-terras de Goiás. 

O mar não me lavou:
meu corpo todo
tem as marcas da terra – o sol, o chão,
os cheiros doces dos quintais, do lodo,
e a febre do meu T nesta sezão. 

Eu sou quem sou. Não me mudei. Mudou-me
uma parte da vida, mas foi sem:
não me levou nem me lavou,
livrou-me
da danação de todo mal, amém. 

(Se houver louvor aqui, se alguma luva,
qualquer pessoa a pode usar por mim:
a minha história é como um guarda-chuva
que a gente esquece,
quando chega ao fim.)


Gilberto Mendonça Teles



ELIPSE



Vim descobrir o que ficou de elipse
e precisão,
o que se fez sucinto e reticente,
o inacabado do cabo Não. 

Vim recolher esta úmida sintaxe
que foi além
e não poupou a rigidez da língua
que ficou sem. 

E vim, não para ver, deixar a meio
fala e raiz:
vim extrair de ti a própria essência
do que não fiz. 


Gilberto Mendonça Teles


ANULAÇÃO


Ocupar o espaço
contido na sombra,
ser o pó do espesso,
o vão da penumbra, 

o dó sem começo,
o nó sem vislumbre,
o invisível traço
do não-ser: escombro. 

Ser zero, ou nem isso:
letra morta, timbre
do vazio no osso.

Ser aquém do nome
— o só do soluço
de coisa nenhuma.

Gilberto Mendonça Teles




ANÚNCIO 



Troco urgentemente uma secretária 
eletrônica, 22ov, bastante conservada 
(motivo mudança de amor e domicílio), 
por uma secretária invisível, 
dessas que fazem desaparecer 
tudo de repente: 
colóquio de alquimistas 
congressos de bruxas 
reuniões de catedráticos 
e até o I simpósio 
de mulheres jubilosas. 

Que seja loirena e diligente, 
que seja meiga, sobretudo quando visível. 
Que não se esqueça dos pequenos aniversários 
(uma semana disso, um mês daquilo) 
e os saiba comemorar condignamente 
nalgum lugar secreto: 
ilha ou limbo 
beira de mar 
quarto de hotel 
fumaça de cachimbo. 
Que seja também multilíngüe 
para entender-me em todos os sentidos. 
E que não perca nunca o seu charme 
para me seduzir ou raptar-me 
nas horas mais incríveis de solidão. 

(Cartas para esta redação.) 

Gilberto Mendonça Teles





Preciso urgentemente encontrar 
minha secretária invisível 
que se perdeu sexta-feira 
em reuniões e telefonemas 
e me deixou a ver navios. 

Melhor: um submarino atômico 
que entrou pelo rio e bombardeou 
toda a cidade, virando-a 
pelo avesso, como um absurdo 
e até remoto cataclismo. 

(Gratifica-se bem quem der notícia 
a esta redação. Ou à polícia.) 

Gilberto Mendonça Teles




ORIGEM

Agarro o azul do poema pelo fio
mais delgado da lã de seu discurso 
e vou trançando as linhas do relâm-
pago no vidro opaco da janela. 

Seu novelo de nuvens reduplica 
a concreta visão desse animal 
que se enreda em si mesmo, toureando 
a púrpura do mito e se exibindo
diante da minha astúcia de momento. 

Sou cheio de improviso. Sou portátil. 
E sou noite e falácia. Sou impulso
e excesso de acidentes. Sou prodígios.
E agora que há sinais de ressonância 
sou milícia verbal configurando 
a subversão na zona do silêncio. 
.......................
Todo início é noturno. Todo início
é maior que seu tempo e sua agenda 
de imprevistos. Mas todo início aguarda 
a visita dos deuses e demônios.

Há fórmulas polidas nos subúrbios 
da fala. Há densidades nos recintos 
desprovidos de margens. E nos mínimos
detalhes de ruptura existe um sopro
de solidão que soa nesta vértebra 
de audácia e persistência. 
...........................................Alguém pertuba 
o horário de recreio das palavras. 

Gilberto Mendonça Teles
In 'Arte de armar' (1977)


CONVITE

Vem comigo para dentro 
da palavra multidão:
de mãos dadas somos vento,
somos chuva de trovão.

Se uma andorinha sozinha
não pode fazer verão, 
vem comigo mais ainda 
para dentro da expressão. 

Cada letra tem seu ninho 
de palavras no porão:
vem tirá-las de seu limbo, 
vem fazer tua oração. 

Dentro de cada palavra,
no seu timbre e elocução, 
saberás de peixe, cabra, 
de liberdade e quinhão. 

E até na palavra nova, 
bliro, ilhaval e zirlão 
alguma coisa se dobra, 
tem sentido a sedução. 

Pega portanto uma letra, 
pega a palavra invenção
e transforma em borboleta 
um risco arisco no chão.

É no centro da linguagem,
no seu silêncio e pressão, 
que se dedilha uma casa, 
que se desenha a canção. 

Gilberto Mendonça Teles
In (Álibis) 2000.



Etnologia


Ainda 

há índios.

Gilberto Mendonça Teles



Nos Últimos 20 anos

Nos últimos vinte anos, muitas coisas
tiveram seu princípio –

.................Uma lagarta
começou a comer o talo verde
de uma folha esculpida na parede
do edifício mais próximo.

................Uma aranha
teceu e desteceu a sua renda
à espera da odisséia de um inseto
curioso.

................Um beija-flor impaciente
começou a amolar o longo bico
no metal do verão.

................Recém-nascido,
um menino berrava o beabá
mijando indiferente na linguagem.
Entre greves, censura e terrorismo,
um relâmpago veio da internet,
riscou no movimento o próprio site
e se perdeu na pós-modernidade
do milênio.

................Enquanto isso, o amor abria
seus e-mails (sem vírus), a sua flor
de signos, suas formas, a sua arte
de escandir as vogais, tanger os ictos,
as consonâncias e, sílaba a sílaba,
plantar no íntimo do homem o desejo
mais fundo da poesia.

Gilberto Mendonça Teles



DILEMA

Tenho o sangue da gente aventureira
e o amor à terra que me deu o sonho.
Mas me encontro parado na fronteira,
sem saber se recuo, ou se a transponho.
Aprisionado pelo ideal que sonho
na solidão da praia derradeira,
risco na areia o poema que suponho
ficará na memória a vida inteira.

O gosto de lutar contra o imprevisto
fez-me todo de vento e não resisto
ao desespero bom de ir mais além.
Estendo os olhos para o mar, e penso:
"- Tenho chumbo nos pés e o mar e imenso:
só me resta sonhar como um refém." 


Gilberto Mendonça Teles



MELODIAS

Ternas melodias de longínquas plagas,
ns manhãs da vida fascinando a gente,
sois o desafio de revoltas vagas
pela alma ecoando como um som ausente.

Ternas melodias, de que mundo ignoto,
de que estranhas erras vindes me encantar?
Sois a transparência que no sonho noto?
Sois a ressonância do poema, no ar?

Ou vindes dos astros – de uma Sírius? Vênus?
De que firmamento, de que céus surgistes?
Quérulos gemidos de amarguras plenos,
só podem ser ecos de meus sonhos tristes.

Essas melodias cheias de tristeza
são talvez saudades que em meu peito eu tinha:
São as confidências dessa natureza
de milhares de almas que possuo na minha.

Essas melodias que a minh´alma douram,
que a meus sonhos beijam com tamanho ardor,
essas melodias tão sonoras foram
de remotos tempos vibrações de amor.


Gilberto Mendonça Teles



O OUTRO

Já não serei eu mesmo, serei outro
quando me virem segurando as horas
e desenhando pássaros barrocos
nas pétalas das conchas e das rosas.

Se, deslumbrado pela luz da autora,
eu caminhar sem rumo, como um louco,
sabei que levo estrelas na memória
e me contemplo velho, sendo moço.

Diante dos homens gritarei comícios
e arrastarei por onde for o bando
que me seguir os passos indecisos.

E quando a noite vier rolando o medo,
eu dormirei nas pedras como um santo
e sonharei nas ruas como um bêbado. 


Gilberto Mendonça Teles







SONETO XXII


Não morrerás em mim. Não morrerás
assim como uma sombra na distância,
o vento no horizonte e, nas manhãs,
a alegria mais pura que inventamos.
Serás presente em tudo e viverás
o segredo de todos os momentos.
Todas as coisas gritarão teu nome
e o silêncio mais puro, o mais sutil,
aquele que mais dói e acende as noites
e o ser profundamente intranqüiliza
este restituirá o movimento,
a eternidade viva de teus passos
e a certeza mais limpa de que nunca
tu morrerás em mim.
Não morrerás.


Gilberto Mendonça Teles
de Sonetos do azul sem tempo






ROSÁRIO

Para Mary

Em pleno sol de outono, em pleno maio, abrindo
a alma para os cristais dos dias mais risonhos,
vou desfiando ao léu, pelo horizonte infindo,
meu rosário de sonhos.

Vou desfiando, assim, meu rosário de contas
esplêndidas, azuis, de rósea cor tocadas
e que são como orvalho a oscilar-se nas pontas
das folhas pelo sol do estio marchetadas.

Hei de rezá-las todas.
Passá-las, de uma a uma, em cânticos de hinário,
que os dias deste mês de noivados, de bodas,
serão contas de luz na cruz do meu rosário.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos


ACALANTO


Fecho meus olhos para o teu canto
e ouço a cantiga vibrando no ar:
asas de vento, sons de acalanto,
a luz do dia no próprio encanto
que o sol da vida te faz cantar.

Fecha teus olhos para o meu canto
e ouve o marulho longe de um mar,
lançando à praia do desencanto
todo o meu sonho desfeito em pranto
que o sal da vida me faz chorar.


Gilberto Mendonça Teles
In Poemas Reunidos



CANÇÃO


As horas dançam no tempo
e o tempo, na madrugada.

Do cimo da vida, apenas
vejo a poeira na estrada.

Meus rastros viraram pedras
na terra do antigamente.

E as horas morrem no tempo
como o tempo, no poente.


Gilberto Mendonça Teles
Planície “in” Hora Aberta



O discurso


Havia a necessidade absurda de falar
para manter o equilíbrio da mesa
e preservar a reputação implícita
nos gestos.


Alguém chegou a reclamar a urgência
de um gravador para medir as vaias.
Outro, mais complacente, se preparava
para pedir bis. Um terceiro mastigou
ruidosamente a ponta da língua.


Neste momento solene... o poeta
burlou a vigilência das moscas
e deu um salto mortal no meio
do discurso.


E ante a curiosidade geral dos convivas,
fabricou um cavalo de miolo de pão
e fugiu a galope, levando à garupa
a garota que estava fingindo que não. 

Gilberto Mendonça Teles



Meus Outros Anos


Eu me lembro, eu me lembro, Casimiro,
no meu São João, no meu Goiás, na aurora
da minha vida, eu li o teu suspiro,
li teus versos de amor que leio agora.

E que meu filho lê, e todo mundo
sabe de cor, de coração, de ouvido,
desde que sinta o apelo mais profundo
de tudo que tem força e tem sentido.

Contigo comecei a ver e vi
as coisas mais comuns - o natural:
o rio, a bananeira, a juriti
e a tarde que cismava no quintal.

Contigo descobri a travessia
do tempo na manhã, no amor, no medo,
nos olhares da prima que sabia
a dimensão maior do meu brinquedo.

E até este confuso sentimento,
esta idéia de pátria, que persiste,
veio de teus poemas, no momento
em que tudo era belo e apenas triste

era pensar no exílio e ver no termo
um motivo de doença e de pecado;
triste era imaginar o poeta enfermo,
tossindo os seus silêncios no passado.

Eu me lembro, eu me lembro! e quis de perto
ver o teu rio, teu São João, teu lar;
ler a poesia desse céu aberto
que continuas a escrever no mar.

Gilberto Mendonça Teles


ELIPSE



Vim descobrir o que ficou de elipse
e precisão,
o que se fez sucinto e reticente,
o inacabado do cabo Não. 

Vim recolher esta úmida sintaxe
que foi além
e não poupou a rigidez da língua
que ficou sem.

E vim, não para ver, deixar a meio
fala e raiz:
vim extrair de ti a própria essência
do que não fiz. 

Gilberto Mendonça Teles


ANULAÇÃO



Ocupar o espaço
contido na sombra,
ser o pó do espesso,
o vão da penumbra, 

o dó sem começo,
o nó sem vislumbre,
o invisível traço
do não-ser: escombro. 

Ser zero, ou nem isso:
letra morta, timbre
do vazio no osso.

Ser aquém do nome
— o só do soluço
de coisa nenhuma.

Gilberto Mendonça Teles


Geração

Sou um poeta só, sem geração,
que chegou tarde à gare modernista
e entrou num trem qualquer na contramão,
e vai seguindo sem sair da pista.

A de quarenta e cinco me tutela,
me trata como a um filho natural.
Eu chego às vezes tímido à janela
mas vou brincar no fundo do quintal.

Na poesia concreta, a retaguarda
é que me vê brincando de arlequim.
Às vezes fujo à rima e lavo um fardo
de roupas sujas, não tão sujo assim..

A de sessenta e um foi de proveta,
foi mágica de circo para um só.
Ninguém me viu caçando borboleta
ou pescando escondido o meu lobó.

Quem fez letra, cantou e usou bodoque
que se fez marginal pela cidade,
será que fez poesia ou fez xerox
ou apenas tropicou na liberdade.

Gilberto Mendonça Teles
de Hora Aberta


À Linha da Vida


A que, visível, se interrompe
na palma da máo, decisiva:
a ultrapassagem do horizonte
pelo lado avesso da escrita.


À Linha do Universo


A que, invisível, se deleita
no olho sensual da fechadura:
a letra (aleph) e seu pentelho
no espaço-tempo que se enruga.

E, anjo ou demônio, pinta o sete
mas tão relativo e medroso
que o tom azul logo se perde
na linha de fundo do esboço.


À Linha-d’água


Visível enquanto invisível,
compõe seu ritmo avergoado:
a imagem se imprime no nível
do que está deste e do outro lado.

Por sob a carga o sonho e o medo
de haver perdido e haver ganhado:
no contrabando do segredo
o contrapeso do sagrado.

E o que ficou quase perdido
(o que me deixa envergonhado)
ainda viaja sem sentido,
meio à deriva,
xxxxxxxxxxxe bem calado.


Rio, 1986.

Gilberto Mendonça Teles


Locus Amoenus


Sou homem do mato e meio bugre:
falo pouco e penso enviesado,
usando sempre expressões populares.
E, por gostar de fazer arte,
ando morto de amor,
mas vivinho da sílvia.

Às vezes sou até meio exibido:
mato a cobra e mostro logo o pau,
enquanto os deuses brincam
no lugar mais ameno da floresta.

Daí talvez o meu gosto e inclinação
pelas coisas mais simples:
cheiro de flor, resina, zigue-
zague de borboleta e barulhinho
de folha seca nos trilheiros,
além do indispensável gole de cachaça
que faz muito bem depois do poema.

O que não se explica é este jeito de sombra,
este balanço do corpo nos atalhos
e este sestro de chupar a ponta da língua
e extrair a polpa de uma fruta
no meio do cerrado.

É daí que aprecio melhor
o pisco repentino de uma estrela.

Gilberto Mendonça Teles


45

A Domingos Carvalho da Silva


Sou da geração
de quarenta e cinco
ou tenho na mão
a porta sem trinco?


(Nem sei quantas são
as telhas de zinco
que cobrem meu chão
de quarenta e cinco.)


Semeei meu grão?
fui ao fim do afinco?
pesquei a paixão
de quarenta e cinco?


Tudo é sim e não
em quarenta e cinco.
E a melhor lição
forma sempre um vinco


de interrogação
no tempo, onde brinco
procurando um vão
entre o 4 e o 5.



Gilberto Mendonça Teles





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